outubro 24, 2005

A LUZ E O CEGO

[...] Quero sublinhar a relação entre o verbo e a imagem para iniciar uma reflexão mais particularizada. De início é preciso constatar que não se pode separar essa parceria que eles formam, uma vez que a imagem condiciona o texto e vice-versa. Ou por outra, logo que nós não dispomos mais de imagens, é o verbo quem nos fornece novas possibilidades.
Para tanto basta evocar os textos bíblicos em que se apoiaram, por exemplo, os pintores, para conceber a imagem física de uma personagem ou de um evento. A importância do texto nos parece particularmente importante no caso do Moisés de Michelangelo. Os cornos de sua cabeça vêm de um erro de tradução no texto que serviu de suporte à figura. Que Michelangelo jamais viu Moisés, é evidente: foi o espaço do verbo que lhe forneceu a imagem mental em seguida trabalhada na pedra. Podem ser encontrados casos semelhantes envolvendo outras imagens da história da arte que se referem à Bíblia: figuras de Jesus, da Virgem Maria, ou esculturas representando Jó, David.
Nesta perspectiva o artista é sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e a evidência concreta da imagem, tal como realizada na arte através de um ou de outro suporte material.
O verbo é, então, cego: ele nos fala do lugar em que surge uma gênese primeira da imagem. É deste modo que, se queremos ir às origens das imagens visuais, nós chegamos forçosamente ao espaço do invisível, este do verbo, e à noite que precede o dia das figuras conhecíeis [...].

BAVCAR, Evgen. A Luz e o Cego. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 461