outubro 24, 2005

A LUZ E O CEGO

[...] Quero sublinhar a relação entre o verbo e a imagem para iniciar uma reflexão mais particularizada. De início é preciso constatar que não se pode separar essa parceria que eles formam, uma vez que a imagem condiciona o texto e vice-versa. Ou por outra, logo que nós não dispomos mais de imagens, é o verbo quem nos fornece novas possibilidades.
Para tanto basta evocar os textos bíblicos em que se apoiaram, por exemplo, os pintores, para conceber a imagem física de uma personagem ou de um evento. A importância do texto nos parece particularmente importante no caso do Moisés de Michelangelo. Os cornos de sua cabeça vêm de um erro de tradução no texto que serviu de suporte à figura. Que Michelangelo jamais viu Moisés, é evidente: foi o espaço do verbo que lhe forneceu a imagem mental em seguida trabalhada na pedra. Podem ser encontrados casos semelhantes envolvendo outras imagens da história da arte que se referem à Bíblia: figuras de Jesus, da Virgem Maria, ou esculturas representando Jó, David.
Nesta perspectiva o artista é sobretudo o mediador entre as trevas do verbo, do fundo de sua cegueira, e a evidência concreta da imagem, tal como realizada na arte através de um ou de outro suporte material.
O verbo é, então, cego: ele nos fala do lugar em que surge uma gênese primeira da imagem. É deste modo que, se queremos ir às origens das imagens visuais, nós chegamos forçosamente ao espaço do invisível, este do verbo, e à noite que precede o dia das figuras conhecíeis [...].

BAVCAR, Evgen. A Luz e o Cego. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 461

EVGEN BAVCAR



The gaze of water

Evgen Bavcar é um fotógrafo cego. Nasceu em uma cidade pequena perto de Veneza em 1946. Antes dos doze anos perdeu ambos os olhos em dois acidentes consecutivos. Foi depois de quatro aos que usou a câmera fotográfica pela primeira vez ao fotografar uma mulher por quem estava apaixonado. O que o motivava era o prazer que sentia de ter roubado e fixado em um filme algo que não pertencia a ele. Descobriu que poderia possuir algo que não podia ver.
Bavcar estudou história e filosofia. Seu trabalho dirige-se às relações entre a visão, a cegueira e a invisibilidade: “Minha tarefa é a reunião dos mundos visíveis e invisíveis, a fotografia permite que eu perverta o método estabelecido da percepção entre aqueles que vêem e aqueles que não”.
http://www.zonezero.com/exposiciones/fotografos/bavcar/#

TA PHAEA

[...] Na ampla gama do espectro que vai de phaós (luz, luz dos astros, luz do dia, luz dos olhos, flama, vir à luz, nascer, vivente) a phaiós (sombrio, cinza, escuro, luto), da luz à treva, da vida à morte, espalham-se as palavras do visível: ta phaea (os olhos), que pitagóricos e platônicos chamarão de faróis, os olhos portadores de luz [...] phaédo (o sol), phaeino (brilhar, irradiar, iluminar), phaidós (brilhante, luminoso, claro, sereno, puro, alegre), [...] phainómenos (visivelmente, manifestamente, claramente), donde virão fenômeno (e seu conhecimento: fenomenologia), fantasia, fantasma, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão, imaginação e palavra como resultados do ato da luz [...]
CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. in NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.34

outubro 19, 2005

O OLHAR



“o mundo das imagens não se satisfaz em imprimir-se simplesmente sobre um órgão fielmente sensível. Ao contrário, ao olhar para um objeto nós procuramos alcançá-lo. Com um dedo invisível movemo-nos através do espaço que nos circunda, transportamo-nos para lugares distantes onde as coisas se encontram, tocamos, agarramos, esquadrinhamos suas superfícies, traçamos seus contornos, exploramos suas texturas. O ato de perceber formas é uma ocupação eminentemente ativa.” (Arnheim, 2002, p.35)
texto: O OLHAR

ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual, uma Psicologia da Visão Criadora - São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

outubro 16, 2005

Branco sobre Preto

O OLHO E O ESPECTADOR

[...] Não seria possível ensinar o modernismo às crianças como uma série de fábulas de Esopo? Seria mais memorável do que a apreciação da arte. Pense em fábulas como "Quem Matou a Ilusão" ou "Como a Borda se Rebelou contra o Centro". "O Homem que Violou a Tela" viria depois de "Onde Foi Parar a Moldura?" Seria fácil chegar às morais: imagine "O Empaste Evanescente que Escorreu - e Depois Voltou e Ficou Gorduroso". E como contaríamos a história da pequena Superfície Pictórica que cresceu e se tornou tão malvada? Como ela despejou todo o mundo, inclusive o Pai Perspectiva e a Mãe Espaço, que criaram filhos legítimos tão bacanas e abandonaram apenas esse fruto horrendo de um caso incestuoso, chamado Abstração, que desprezou a todos, entre os quais - mais tarde - suas amigas Metáfora e Ambigüidade; e como a Abstração e a Superfície Pictórica, unha e carne, ficaram enxotando um moleque persistente chamado Colagem, que não desistia nunca. As fábulas dão mais latitude do que a história da arte [...]
Texto extraído do livro No Interior do Cubo Branco de Brian O'Doherty.
Links:

outubro 14, 2005

ÁLBUM DE FAMÍLIA


As fotos de família são objetos de culto. Com o tempo vão tornando-se relíquias. Philippe Dubois fala dos aspectos da fotografia que faz com que ela tenha esse valor sentimental, que segundo ele, vai além de qualquer racionalidade. Definitivamente, o que confere valor a essas fotos de famílias não são as qualidades estéticas da composição ou, o grau de semelhança ou de realismo, mas sua conexão com a realidade. As fotos trazem os traços físicos de pessoas singulares que estiveram ali, e que têm relações particulares com aqueles que as olham.
A fotografia é inseparável de sua situação referencial. Ou seja, encontra seu sentido, em primeiro lugar, em sua referência. Por este motivo seu valor vai alem da sua qualidade estética.

[...] A foto, literalmente, como objeto parcial (no sentido freudiano), oscilando entre a relíquia e o fetiche, levando a "Revelação" até o milagre. Num modo mais trivial, toda a prática do álbum de família vai no mesmo sentido: além das poses congeladas, dos estereótipos, dos clichês, dos códigos fora de moda, além dos rituais de organização cronológica e da inevitável escansão dos eventos familiares (nascimento, batismo, comunhão, casamento, férias etc.), o álbum de família não cessa de ser um objeto de veneração, cuidado, cultivado, conservado como uma múmia, guardado numa caixinha (com os primeiros dentes de bebê, ou com a mecha de cabelos da vovó!); só se o abre com emoção, numa espécie de cerimonial vagamente religioso, como se se tratasse de convocar os espíritos [...] (Philippe Dubois).

[...] Essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, não são mais os retratos tradicionais de família, são a presença perturbadora de vidas detidas em sua duração, libertadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível; a fotografia não cria, como a arte, a eternidade, não embalsama o tempo, apenas o subtrai de sua própria corrupção; [...] a fotografia beneficia-se de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução. O desenho mais fiel pode dar-nos mais informações sobre o modelo, mas jamais possuirá, apesar de nosso espírito crítico, o poder irracional da fotografia que domina nossa crença. [...] (André Bazin)

[...] Como impressão luminosa, a foto é a 'presença íntima de algo de uma pessoa, de um lugar, de um objeto. Ao mesmo tempo, dá a caução mais forte do uma-vez-nunca-mais. Data impiedosamente os seres que são para nós os mais vivos, mas fora de qualquer duração. Ela os coloca num espaço estritamente localizável, mas fora dos verdadeiros lugares. Cada um nela não passa de uma fração de instante e um corte de espaço que não podemos viver nem reviver.[...] (Henri Van Lier)

Estas citações estão no livro Ato Fotográfico de Philippe Dubois Editora Papirus.
links:
degrau_final.pdf

outubro 11, 2005

Figura e Fundo


Todo objeto sensível só existe em relação a certo "fundo". Esta expressão se aplica não só às coisas visíveis, mas a toda a espécie de objetos ou de fatos sensíveis. Um som se destaca sobre um fundo constituído de outros sons ou ruídos ou sobre um fundo de silêncio, como um objeto sobre um fundo luminoso ou escuro. (Mario Pedrosa)